sábado, 24 de janeiro de 2015

Sobre coxias e palcos

Tenho o costume de andar, onde quer que eu esteja no mundo, dando igual atenção ao espetáculo que se faz sobre o palco e ao movimento que há por trás das coxias. É sempre um olho no maestro e o outro na orquestra. Não quero que nada passe despercebido. Tudo é - sempre - novidade. Há pouco mais de uma semana que Paris se descortinou para mim e que me pediu para ser desbravada.
Há exatos três anos, Paris e eu não fomos lá muito amigas - e ambas sabemos -, mas antes de chegar aqui, sentia e sabia que algo maior iria me trazer de volta um dia. Não sei como essa ideia se alimentou dentro de mim, mas fato é que ela nasceu, cresceu e ganhou corpo. Hoje, estar e estudar aqui é algo tão nítido quanto a intangibilidade do instante. Posso, talvez, compreender que o que me fez atravessar um oceano foi uma aspiração da alma; já que a alma, ela desconhece limites, fundindo-se conosco e com todo o resto. Ando por suas ruas monocromáticas e minha alegria se confunde com suas esquinas, sempre pronta a aquarelar os dias. Estou irreversivelmente apaixonada por tudo o que estou vivendo.

Mas não, não há blasélidade que me seja mais charmosa do que a brasilidade. E é por esta que eu viverei a abrir cortinas.






terça-feira, 30 de dezembro de 2014

"Que é, pois, o tempo?"

Se ninguém me pergunta, eu o sei; mas se me perguntam, e quero explicar, não sei mais nada.



                                                                              (Santo Agostinho, em "As Confissões")


Mais um verão que chega. Menos um dia para o outono. Mais um minuto de aprendizados. Menos um dia de vida. Mais um ano que se passa em nossas vidas. Para alguns, um ano demais; para outros, com dias demais.
Toda vez que um ano nos escapa, é natural a retrospectiva mental dos eventos que o fizeram chegar ao seu fim tal como ele chegou. Há rios que fluem apenas na ânsia de perecer ao mar; há outros rios que, de janeiro a dezembro, observam atentos as margens que o levaram a correr. Essa reflexão, íntima da alma, chega a ser tão inexcedível como o próprio tempo.
De um telescópio ao revés, olhei para o meu 2014. Mas me foi necessário, também, um microscópio e um estetoscópio. Impossível seria conseguir visualizar, hoje, sua grandiosidade, não fosse o fato de eu me permitir relembrar dos tantos pequenos prazeres que nele existiram. Ouvi o meu ano e o que ele tinha a me dizer.
Esse ano foi um ano bom. Um ano-ponte, assim eu o caracterizo. Apenas pontes nos fazem passar de um lado conhecido a outro inimaginável, mantendo os nossos pés sobre o chão. Há muito que espero essa metamorfose de 2014. Tive que atravessar todo ele, tateando corrimões e oscilando aos seus degraus, para que eu veja 2015 se plenificar.
Aprendi a esperar, escolhi uma especialidade para a vida profissional, descobri novos abraços, revivi um amor antigo, escrevi mais do que eu gostaria, li menos do que eu queria, pedi desculpas e desculpei à mesma proporção, despersonifiquei a perfeição, vislumbrei uma sociedade em seu potencial macro, minimizei muitas janelas de problemas. Foi um ano em que pude senti-lo bastante construtivo, ao menos humanamente.
Viver de presentes é ao que nos convida Santo Agostinho: o presente do passado é a memória; o presente do presente é a intuição direta; o presente do futuro é a esperança. Para 2015, tenho esperanças na aspiração ao autoaperfeiçoamento e às virtudes. Acho que, assim, poderei seguir num ano de paz e em paz; interpessoal, intrapessoal.
Que, então, nos seja apresentado um Ano-Novo feliz, de travessias sabidamente irregressáveis, que nos permitam aportar de cais em cais, (ad)mirando outros rios cujos barcos sigam no mesmo navegar que o nosso.

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Descronologia

De repente, naquela esquina, o carro saiu de dentro do muro contra o qual seu corpo estava prensado, entregando-lhe, novamente, a alma. A colisão do ônibus com o automóvel se desfez e o trânsito fluía na avenida. Minutos antes, enxugando a testa, tinha comentado com o rapaz da água-de-coco que se tornara avó e, por isso, estava de malas prontas para conhecer o neto capixaba em sua primeira semana de vida. Pode, então, refazer mentalmente a lista de compras de supermercado, pra onde iria depois daquela caminhada matinal em torno do estádio. (Sim, era recente a recomendação médica de exercícios leves e diários sob o sol de até dez). Leu a capa do jornal, na portaria de seu prédio, sobre a qual o porteiro comentava com outro morador, que lamentava a derrota de seu time na noite anterior. Retornou ao elevador, ajeitou a franja com uma presilha e reparara – com um sorriso através do espelho – que uma das crianças escondia a face entre as mãozinhas. Bebeu seu café antes de sair e logo depois de passar a ferro quente o terno do filho; ele teria um dia importante no trabalho, com uma possível promoção. Recolheu os chinelos e deitou-se, com sono, até alcançar os sonhos daquela noite.

O Sol, porém, nunca a desapontava e sempre nascia, incidindo raios sobre os pés da cama, acordando Dona Marilane todos os dias. Os ponteiros do relógio retomaram seu curso horário e uma prece fez-se ali: pela vida dos seus, por um dia pra si.

domingo, 7 de setembro de 2014

Quintessência

Na volatilidade daquela atemporal ventania, apoiavam-se sobre a solidez de se saberem a sós; tão cálidos quanto calados. A cantiga do vento que os abraçava lhes secava as sombras, ungidas de sal e de água, e carregava as efemeridades consigo, deixando-os apenas com o que de mais etéreo houvesse na materialização daquele instante. Sentiam os pés tatearem algo de arenoso e percebiam o óbvio: havia muito tempo que eles não pisavam, flutuavam. E, ali, viam-se, enfim, afundando-se – e já fincados – num chão por que tanto queriam rumar. Trataram de ser cautelosos com a areia, envolvendo-se suavemente de sua textura, como planta que se enraíza; e eles, que eram dois, foram – pelo fogo – fundidos.
Não sabem, ainda hoje, por que Lua a maré daquela noite fora regida.

- A sorte, disse um deles, é que o mar é infinito.


quarta-feira, 20 de agosto de 2014

5h56

e já se consumia o melhor instante daqueles dias do Agosto. Qualquer alegria no porvir seria inferior à do minuto nascente. Abria os pensamentos antes mesmo dos olhos e desempacotava o sempre presente ‘bom-dia’: tão esperado quanto surpreendente. Havia sempre uma dúzia de palavras dele previamente tateadas, amansadas, acarinhadas, que ansiavam pela miopia dela. Aquelas letras – cafeína, de tão quentes – envolviam-na com seu cheiro recém chegado e lhe proviam a energia necessária para que sacudisse os sonhos deixados no edredom, de modo a fazê-los despertarem ali, junto com ela. Não soube precisar bem quando foi que passou a notar os dias sem os quebrados minutos. Algo de preciso e precioso havia se quebrado. Demorou a se acostumar com o relógio sem seus mínimos traços; com apenas ponteiros apontando vazios espaços. O planeta que os abriga, no entanto, tratou de transladar rapidamente lento no Espaço e hoje se faz um novo agosto cujo gosto remete à saudade do café fresco bebido naquele remoto minuto.